quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O Direito Penal não se tornará uma coutada do criminoso!

O "crime continuado" na jurisprudência do STJ

Alguns excertos de acórdãos do nosso Supremo Tribunal de Justiça (ao acaso, sem outras pretensões que não sejam as de informar, chamar a atenção dos leitores deste blogue, fazer reflectir, estimular o esforço moral, jurídico, e ético) sobre o crime continuado:


Ac. 29-03-2007 STJ

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/633f42d6c2265faa802572ae0056fbd4?OpenDocument

(transcrevemos o sumário:)

«I - O recorrente não veio questionar o enquadramento jurídico dos factos, que o tribunal recorrido integrou num crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, p.p. pelos artigos 30.º e 172º, n.º 2 do Código Penal. Mas, mais correcto teria sido considerar os vários actos criminosos apurados como constituindo um único crime de trato sucessivo e não como um crime continuado.
II - No crime continuado há uma diminuição de culpa à medida que se reitera a conduta, mas não se vê que tal diminuição exista no caso do abuso sexual de criança por actos que se sucedem no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da culpa parece aumentar à medida que os actos se repetem.
III - Não podendo este Supremo corrigir “in pejus” a qualificação jurídica do colectivo relativo à existência de um crime continuado, pois o recurso é do arguido e em seu benefício, deve ficar, no entanto, o reparo.»

Comentário:
Não podendo às vezes o STJ, por questões processuais, imiscuir-se na questão da qualificação jurídica, rogo ao Ministério Público para que não se conforme com a qualificação de "crime continuado" em relação a crimes que tenham ofendido bens pessoais, mesmo no quadro do actual 30/3 Código Penal: uma tal norma será sempre inconstitucional, por uma dupla violação - da dignidade da pessoa, e da igualdade (10 abusos não podem ser iguais a um abuso, acrescido apenas de nove "aumentos marginais" dentro da moldura penal prevista para um único crime! O crime continuado seria assim na prática um "prémio" ao criminoso por cada crime que for adicionando ao primeiro. Dito em bom português: "os crimes por grosso saem mais barato". Isto não pode ser!).


Ac. 24-10-2007 STJ

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/44b7c2feb6d773748025738d0044499c?OpenDocument

(transcrevemos apenas um excerto do sumário)

«VI - No caso vertente é notório que ao crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade objecto do processo subjazem exclusivamente razões endógenas ao arguido, sendo que a situação ou quadro em que se verificou o facto criminoso pelo qual foi condenado no processo n.º…, do 1.º Juízo Criminal de Oeiras, bem como o próprio facto, não constituem motivo de diminuição da sua culpa, antes de agravação desta. Aliás, foi por efeito daquela e de outras condenações que o arguido foi considerado reincidente [«Não obstante as anteriores condenações, veio a verificar-se que elas não foram advertência suficiente para demover o arguido da prática de novos crimes, o que bem demonstra uma clara indiferença ao aviso de que lhe deveriam ter servido as anteriores condenações»].»

Comentário:
Com o crime de tráfico de estupefacientes por fundo, eis um acórdão do STJ que se pronuncia, saudavelmente, contra a qualificação de "crime continuado". E isto num crime de perigo, como é o do tráfico de estupefacientes!... Por aqui se vê como aplicá-lo aos crimes de resultado será um verdadeiro holocausto.


Ac. STJ 10-10-2007

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a49d5d0e514fa5258025738c004b8c67?OpenDocument

(transcrevemos um excerto do sumário:)

«III - Os problemas dogmáticos relativos ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), dos mais complexos na teoria geral do direito penal, têm no art. 30.º do CP a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.»

Comentário:
Aleluia! Pode ser que os alunos de Direito Penal passem por aqui e leiam esta passagem, onde se ensina aquilo que é o VALOR-REGRA: o número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou o número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Já o "crime continuado" se apresenta como o valor-excepção, e por isso só aplicável dentro de condicionalismos muito próprios, aliás expressamente ditados no art. 30 Código Penal. Acresce ainda outro condicionalismo, que não está no Código Penal mas na Constituição: a dignidade dos bens pessoais não permite que o "crime continuado" seja aplicado a crimes que ofendam esses bens. (Qualquer dia teríamos o "crime continuado" aplicado a sucessivas tentativas de homicídio contra a mesma pessoa, não? Olhem, digam isto às "máfias da Ribeira"...)


Ac. 05-09-2007 STJ

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0968db54922eafb08025737d002c71e5?OpenDocument

(trascrevemos um excerto do sumário:)

«XI - Pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito.
XII - Contudo,
a integração no referido conceito de crime continuado será sempre inaceitável relativamente a disposições que visem proteger bens jurídicos eminentemente pessoais. Aí, e qualquer que seja a concepção de que se parta, não pode deixar de reconhecer-se que corresponde um valor autónomo a cada pessoa a quem a lei quer estender a sua protecção. Radicando-se tais bens na própria personalidade eles não podem nunca ser tomados abstractamente (cf. Eduardo Correia, A teoria do Concurso, págs. 255 e ss.).»

Comentário:
Mais um acórdão do STJ que firmemente repugna a aplicação do conceito de crime continuado aos crimes contra bens pessoais. Os autores materiais do desgraçado e inconstitucional art. 30/3 Código Penal podem vir aqui matar a ignorância sempre que quiserem. E podem vir aqui também assumir a responsabilidade pelo art. 30/3 in fine, ou a vergonha começa a não deixar os senhores sair de casa?


Ac. 05-07-2007 STJ

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/b90c07e5134e621980257325002e80df?OpenDocument

(transcrevemos uma passagem que cita a Relação, a qual cita por sua vez a magistrada do MP, em abono da tese a final acolhida pelo STJ:)

«De todo o modo, relembra-se que a decisão recorrida se pronunciou nos seguintes termos:
«E o enquadramento jurídico-criminal dos factos por ele praticado – e evidenciado nos autos –, mostra-se correcto, preenchidos como se encontram os respectivos pressupostos objectivos e subjectivos.
Como bem refere a magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, para poder considerar verificado o crime continuado, necessária se tornava a referência, nos factos tidos como apurados no Acórdão recorrido, a que o arguido actuou, de todas as vezes que o fez, pressionado por circunstâncias exteriores que reduziram substancialmente a sua culpa; nenhuma referência neste sentido consta dos aludidos factos provados porquanto, tal situação não se verificou, bem pelo contrário, resulta de tais factos que, para além de se ter mantido a situação exterior que envolveu o arguido das 11 vezes que este actuou, era o próprio quem criava as condições que lhe possibilitavam concretizar os seus propósitos, nomeadamente criando jogos num quarto, normalmente o da CC, fechando a porta e os estores e apagando as luzes, deixando o local em total escuridão e levando-as para o seu quarto, também às escuras, onde praticava os factos relatados na matéria de facto dada como provada no Acórdão; de cada vez que agia, o arguido renovava os seus propósitos libidinosos. Por outro lado, não se extrai da matéria dada como provada que a reiteração criminosa tenha sido fruto de um facilitado circunstancialismo exterior (exógeno) do que de razões endógenas relacionadas com a personalidade do arguido.
Assim, correcta se torna a conclusão do acórdão de que o arguido cometeu 11 crimes de abuso sexual de criança e não 2 crimes de abuso sexual de criança, sob a forma de crime continuado conforme alegado pelo recorrente.»



Comentário final:

Quando a questão já vem do tribunal de 1ª instância cunhado como "crime continuado" e ninguém, nem Ministério Público nem eventuais assistentes se "queixaram", pouco há a fazer.

No entanto, sempre poderia o STJ - como felizmente aconteceu já algumas vezes - num papel pedagógico que julgo um Supremo Tribunal deve assumir, fazer doutrina sobre o "crime continuado", mesmo quando a questão não lhe é solicitada. Um tal comportamento seria sempre um precioso favor ao Povo português, em nome do quem o STJ excerce o poder jurisdicional. Para os que discordarem de "pedagogias" deste tipo (há-os por aí discordantes de tudo o que encaminhe no sentido do que é Bom e Justo...), resta invocar a necessidade de se fazer Ciência Jurídica, para o que é fundamental nunca desperdiçar toda a oportunidade que se oferece a este desiderato.

Se estivéssemos perante uma qualquer questão jurídica trivial, já seria assim.
Estando, para mais, perante o chocante holocausto que é aplicar o "crime continuado" a crimes como a violação ou o abuso sexual, mais se torna premente esta necessidade.

Bem sabemos que o STJ nada pode fazer quanto a alguns erros da 1ª instância.
Mas Direito é Direito, e da 1ª instância ao Supremo vai felizmente uma distância que o Povo estima. :)

Por último, reitero aos Magistrados do Ministério Público o pedido de que nunca deixem cair a possibilidade de recorrer das qualificações ultrajantes de "crime continuado" quando aplicadas a crimes contra bens pessoais. E aos Magistrados Judiciais peço todo o empenho em descobrir, na Ciência Jurídica, que não há razões para fundamentar o "crime continuado" quando se trate de crimes contra bens pessoais. O motivo?

O art. 30/3, in fine, é inconstitucional!

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A parte final do artigo 30/3 CP é inconstitucional!

In Correio da Manhã, aqui:

http://www.correiomanha.pt/noticia.asp?id=273291&idselect=10&idCanal=10&p=200

O procurador-geral da República (PGR) emitiu uma directiva onde recomenda aos magistrados do Ministério Público “particular cuidado” na avaliação dos pressupostos do crime continuado, figura jurídica que segundo o novo Código Penal pode [Discordo: isso seria inconstitucional. V. infra.] ser aplicada no crime contra as pessoas, como abusos sexuais, e que permite que vários crimes sejam punidos como um único.


“Há que reconhecer que a mera possibilidade de atenuação da punição em casos que poderiam ser punidos de acordo com as regras do concurso de crimes, justificará um particular cuidado na avaliação e valoração das circunstâncias”, alerta Pinto Monteiro.
O procurador, que recorda a “controvérsia” gerada pela alteração do artigo 30.º do Código Penal, aconselha os magistrados a absterem-se de invocar a figura do crime continuado quando não estejam “inequivocamente apurados” os pressupostos da ‘continuação criminosa’.
Recorde-se que a aplicação do crime continuado aos crimes eminentemente pessoais foi considerada, por alguns especialistas, como uma alteração à medida do processo Casa Pia. Esta é, aliás, uma das alterações que a Associação de Juízes pela Cidadania quer ver revogada, tendo para o efeito criado uma petição, que está disponível on-line. O desembargador Rui Rangel e o advogado José António Barreiros foram dois dos principais críticos da alteração penal, classificando-a como “ultrajante” e “escandalosa”. [E inconstitucional ;)]
A paternidade da norma não foi assumida, mas o ministro da Administração Interna, Rui Pereira, que coordenou a reforma penal, garante ter sido contra esta solução. O Ministério da Justiça já prometeu divulgar as actas da Unidade de Missão, o que não aconteceu até ao momento. Ana Luísa Nascimento

Lembro que todo o discurso jurídico é valorativo.

A aplicação da figura do crime continuado a bens pessoais causa repugnância, dada a dignidade desses bens.

A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o princípio da dignidade da pessoa humana:

Artigo 1.º
(República Portuguesa)
Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana (...)

A figura do crime continuado aplicado a bens pessoais é, por esta perspectiva - a única possível, dado o valor hierárquico supremo da nossa Constituição - inconstitucional.

Todo o cidadão está obrigado a respeitar a Constituição - magistrados incluídos, dentro e fora do exercício das suas funções.

(Editado a 13/01/2007: chamaram-me a atenção para a última frase, que poderia ser lida com um sentido que não previ. Não se trata de nenhuma crítica aos magistrados, muito menos os referidos na notícia! Isto é um apelo a que, dentro e fora das suas funções, os magistrados - naturalmente, os que defenderem essa opinião - digam alto e bom som que esta norma é IN-CONS-TI-TU-CIO-NAL! Os portugueses estão fartos de nódoas no pano jurídico português! E é preciso gritar isto bem alto aos ouvidos do legislador, a ver se ele se emenda.)

sábado, 5 de janeiro de 2008

Investigar a Unidade de Missão para a Reforma Penal

Para ir investigando a autoria do "crime continuado"...

Este é o contéudo, à uma da manhã do dia 06 de Janeiro de 2007, do sítio electrónico do Governo com o endereço:

http://www.mj.gov.pt/sections/justica-e-tribunais/justica-criminal/unidade-de-missao-para

Esta página sobre a UMRP pertence ao Portal da Justiça (um "site" do Governo), e, no mapa deste "site", encontra-se localizada segundo este directório: Portal da Justiça > Justiça e Tribunais > Justiça Criminal > Unidade de Missão para a Reforma Penal

Os destaques a encarnado são meus. São para chamar a atenção. São para memória futura :)
Passo a transcrever:

«

Unidade de Missão para a Reforma Penal

A Unidade de Missão para a Reforma Penal (UMRP) foi criada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 138/2005, de 29 de Julho (publicada no D.R., I Série-B, de 17 de Agosto) e extinta por Resolução do Conselho de Ministros, no dia 12 de Abril de 2007.
Esta estrutura, na dependência directa do Ministro da Justiça, dedicou-se à concepção, apoio e desenvolvimento dos projectos de reforma da legislação penal, integrada no conjunto de reformas que o Governo, de acordo com o seu programa, pretendeu realizar no sistema de justiça penal.

A UMRP elaborou os anteprojectos de proposta de Lei de revisão do Código Penal e do Código de Processo Penal, de proposta de Lei-Quadro de Política Criminal e de Lei sobre Política Criminal e de proposta de Lei sobre Criminalidade na Actividade Desportiva.
A reforma foi coordenada pelo Mestre Rui Carlos Pereira e por um Conselho que integrou representantes permanentes dos seguintes serviços e organismos:

- Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público;
- Ordem dos Advogados;
- Gabinete do Ministro da Justiça;
- Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Justiça
- Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça;
- Polícia Judiciária;
- Centro de Estudos Judiciários;
- Direcção-Geral dos Serviços Prisionais;
- Instituto de Reinserção Social;
- Instituto Nacional de Medicina Legal;
- Gabinete para as Relações Internacionais, Europeias e de Cooperação do Ministério da Justiça;
- Guarda Nacional Republicana;
- Polícia de Segurança Pública;
- Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Para além dos representantes permanentes foram convidados a participar ou a emitir parecer vários professores universitários de áreas científicas consideradas relevantes para a reforma penal. -->

Esclarecimento - Código Penal
Proposta de Lei N.º 109/X - Código do Processo Penal
Proposta de Lei n.º 98/X que aprova a alteração do Código Penal
Proposta de Lei n.º 108/X sobre Criminalidade na Actividade Desportiva
Esboço da Lei de Política Criminal
Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio - Lei Quadro da Política Criminal
Unidade de Missão para a Reforma Penal

»

As últimas 7 linhas seriam "links".
Deixo aqui, pelo interesse que terá futuramente, o conteúdo da Proposta de Lei n.º 98/X que aprova a alteração do Código Penal: (é, repito, o conteúdo que o "site" disponibiliza à uma hora do dia 06-01-2007)

http://rapidshare.com/files/81596614/ppl98-X.pdf.html

Espero que a forma de proceder ao "download" seja intuitiva.
Se tiver dificuldades, não hesite em escrever para gabriel.orfao.goncalves@gmail.com

Como se pode ver, a proposta de lei já continha a aberração jurídica que é a parte final do artigo 30/3:

O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.

Para memória futura.